terça-feira, janeiro 29

NOZOLINO por NOZOLINO

Textos de Alexandra Carita

Há quem diga que a fotografia contemporânea chegou com ele a Portugal em 1978, quando regressou de Londres, onde a estudou em plena revolução punk. Nunca mais parou. Aos 52 anos, reflecte sobre ela, a vida e o mundo.

São três da tarde em Lisboa. O dia está feio. No ateliê que lhe serve de casa e de espaço de trabalho há 30 anos, o fotógrafo Paulo Nozolino olha a cidade, fuma um cigarro para acompanhar um café, enquanto ouve Angels of Heaven. Aqueles 70 metros quadrados são o reflexo dele próprio e simultaneamente do seu trabalho, iniciado em meados dos anos 70. O preto e o branco são os mesmos que marcam as imagens que fizeram dele um dos mais importantes fotógrafos portugueses da segunda metade do século XX, com um currículo extenso, reconhecido tanto a nível nacional como internacional. Todos os negativos, todas as provas de contacto e todas as fotografias desse percurso estão ali. A eles se juntam pequenos conjuntos de discos, livros e alguma roupa. «Não é preciso mais nada», diz Nozolino, ou não fosse a viagem a «necessidade física» que sempre lhe pautou a vida sem «nunca ter sido um nómada».

Um cadeirão de cabedal, velho, embala-o para a conversa. «O tédio ataca-me regularmente. Preciso de sair, viajar. Mas, atenção! Não concebo a noção de férias», avisa, e explica porquê: «A sociedade está formatada. Obedece a uma espécie de 'complot' que tem por objectivo fazer com que as pessoas não se levantem do sofá ou da cama. A vida passa na televisão, o cinema vê-se em formato DVD, a música está nos CD, o sexo faz-se na divisão ao lado. Não suporto esse sedentarismo.

É por isso que a mala está sempre pronta. As Leicas, os filmes e o mínimo de «tralha» pessoal. No início, costumava ir para o aeroporto, olhava para o ecrã das partidas e escolhia um destino. Outras vezes, em casa, punha um globo a girar e, ao calhas, apontava com o dedo para um ponto qualquer e era para lá que seguia», conta. A Europa foi o primeiro território que começou por explorar com intenções já definidas, depois de o ter calcorreado várias vezes. «Quero aprofundar a carga histórica associada à Europa. E isso que me pode ajudar a montar o ‘puzzle' que ando a construir há anos, apesar de saber de antemão que nunca lhe colocarei a última peça. Esse 'puzzle' é como um diário que nunca acaba, porque um dia terei de morrer.» Paulo Nozolino fala de uma viagem contínua e em espiral que teve como destino primeiro Berlim.
«É lá que a guerra acaba e acaba o homem do III Reich. Parece-me normal que se comece no local onde estão as cinzas, para que depois possamos avançar», adianta. Os outros países foram aparecendo segundo o seu critério lógico: «Só gosto das coisas que não compreendo, das coisas que nunca vi.» Em Paris, onde viveu durante 13 anos (na década de 90), o modo xenófobo e racista como os franceses tratavam os árabes levou-o a atravessar o mundo árabe. «Queria saber quem eram os inimigos. O curioso é que eles não existiam quando os visitei. Mas, depois do 11 de Setembro, todos eles se transformaram nos inimigos da Humanidade, alcunhados de terroristas.» Roma, Madrid, Lisboa, Coimbra, Viena, Badajoz, Londres, Budapeste, Sarajevo... Auschwitz. Locais simbólicos na obra de Nozolino, marcos do seu enriquecimento pessoal ao mesmo tempo. «Senti necessidade de ir àquele campo de concentração nazi, porque senti que a chave estava ali, a chave dos males europeus. A nação mais culta, a terra de Wagner e de Goethe, o povo mais requintado conseguiu criar a indústria da morte, a coisa mais impensável de criar-se. E ali, naquele local, foi posta em prática essa sistematização da morte. Ali trabalharam os técnicos dessa indústria, a matar milhares de judeus, de ciganos, de homossexuais, tal e qual como hoje os técnicos alemães fazem automóveis. Tudo isto em nome de uma ideologia que nunca puseram em causa.»

A luz vai desaparecendo aos poucos à medida que a tarde avança. Os cigarros continuam a acompanhar os cafés. Paulo Nozolino desvenda as entranhas das suas fotografias. Democracia, fascismo, totalitarismo são meras palavras e palavras de que desconfia, que contêm conceitos difusos. As imagens são mais ambíguas, considera, mas provocam uma sensação: «Ou vão direitas ao estômago ou não vão direitas a lado nenhum.» É do «mal de viver» que o fotógrafo fala, o «mal de viver» que sente na pele e que funciona como um motor. Que lhe faz viver num Apocalipse Now constante e que lhe alimenta a angústia. O motor que, ao mesmo tempo, faz com que transforme o medo, o seu maior inimigo, num aliado, por for¬ma a conseguir sobreviver. Sim, «porque viver toda a gente vive, sobreviver são poucos os que são capazes». E é disso que trata o seu trabalho, quer num deserto africano, quer em Nova Iorque, quer na Córsega, em Macau, ou em Tóquio... «As minhas fotografias são um trabalho de sobrevivência. Tudo à minha volta me puxa para a mediocridade. Lutar contra isso é sobreviver, por mais que o resultado seja assustar as pessoas que olham para as minhas imagens e nem têm disponibilidade para as entenderem.» Nozolino fala da solidão, da insegurança, do abandono, da guerra, da destruição, da dor, da decadência, da desagregação, das coisas inevitáveis para que o eterno ciclo da renovação se cumpra. Nozolino fala também da violência, daquela que comete contra si próprio todos os dias para agir, fala do caos e dos restos que nele subsistem, «aquilo que de mais valioso existe e que ninguém quer», fala do caos que está dentro da sua cabeça e que lhe provoca náuseas físicas, fala do caos que oferece aos outros qual Kerouac a escrever «só vos posso oferecer a minha confusão», fala do caos implícito nas tragédias que o rodeiam, nas questões que se coloca inevitavelmente - «Por onde vou seguir? Como vou enfrentar os problemas? De que forma posso fugir? Como fotografo? Porque é que estou a fotografar? O que é que quero fotografar?» -, e fala da tentativa de ordenar o caos através das imagens. Esse caos, sempre o caos, que tal como todas as outras coisas de que vem falando só pode ser aceite visualmente se se lhe conferir uma perspectiva sagrada. É o que faz, diz, quando fotografa a relva ao pé de um muro de arame farpado, o lixo nas ruas do Cairo, ou o estuque a cair da parede de uma casa abandonada em Beirute. Essa sua busca do sagrado entra em comunhão com a verdade, a sua «única procura», qual Graal.

Lisboa já está iluminada. É de noite. No ateliê de Paulo Nozolino, só uma ténue luz se acende. O ambiente aquecido faz esquecer o frio que se adivinha pelas janelas. Ainda há café, o maço de cigarros não acabou. A conversa também não. «A minha paleta é sombria, porque o que vejo não é agradável, e o que vejo que é agradável não fotografo. Quero ficar com essa imagem na memória. A fotografia é mortal», afirma, explicando que não há coisa mais triste do que colar fotografias num álbum de família. «Lembro-me logo dos que faltam. Cada um deles teve uma história. E nós vamos todos morrer como eles.» Talvez por isso se tenha tornado cada vez mais importante olhar ou para o chão ou para o céu, para o que ninguém liga, para aquilo a que as pessoas dão pontapés, ou para a luz, seja qual for a sua intensidade. É entre esses dois territórios que Nozolino encontra os seus tesouros. «São os últimos vestígios civilizacionais, já foram usados e já não os querem para nada, já foram comidos e já os deitaram fora, mas são muito mais importantes do que o saquinho Vuitton.» A partir desse raciocínio, torna-se mais fácil perceber que a essência do seu trabalho, hoje, seja cada vez «menos carne e mais osso». O conceito desta máxima é simples: «Vale a pena ou não carregar no botão? Quando fotografo, não me interessa a história das pessoas, interessa-me sim o que está projectado no rosto delas. Só preciso de tempo para me adaptar â realidade do sítio onde estou. Depois, faço duas fotografias e vou-me embora», explica. E não rejeita o rótulo de minimal, porque «a simplificação da imagem é reduzi-la à sua expressão mais pura».

Sem saber o que é um computador, sem nunca ter tocado numa máquina digital, Nozolino assume a fotografia analógica como a única forma de trabalhar e prefere não abdicar dos três anos de «décalage» entre o clique da Leica e a ampliação da imagem. «Depois de fotografar guardo os rolos, passados seis meses revelo-os e vejo as provas de contacto e dois anos mais tarde amplio a fotografia. Preciso dessa distância fria. Só longe de qualquer tipo de emotividade é que consigo olhar para as imagens e perceber o que são. É esse tempo que o analógico exige de que eu não quero prescindir.»

Como não consegue prescindir do mar. O mar que só aparece numa única fotografia da sua carreira, mas que tem o mesmo significado que todas elas. «A única coisa que me acalma é o mar, e quando olho para as minhas fotografias sinto a calma», diz Nozolino. Dead Child, que mostra o rosto de um menino morto numa morgue em Sarajevo, é para o fotógrafo o exemplo máximo dessa sensação real de ver o mar à sua frente. O paralelismo pode muito bem ter a ver com a poesia com que diz ter de «estar habitado» para poder fotografar. Um estado de espírito que percorre em uníssono 30 anos de muitos estados do mundo.



HOMEM DE EXCESSOS
Londres, Verão de 1976. Inglaterra atravessa um período de pobreza enorme. Durante seis meses, a cidade explode. É a revolução punk. Paulo Nozolino estuda no London College of Printing, ao mesmo tempo que divide casa com Sid Vicious, dos Sex Pistols, entre muitos outros ícones da década. Recorda o concerto dos Ramones, nesse mesmo ano, recorda a euforia de fazer parte da «energia eléctrica que estava no ar». Pára para pensar e conclui que viveu no lugar certo no momento certo e com a idade certa. A experiência marcou-o para a vida inteira. «Foi uma influência que começou por ser postura, transformou-se em atitude e agora faz parte da minha maneira de ser mais intrínseca», conta, sem deixar de frisar o lema da revolução punk: «Foda-se o sistema!»

Os excessos conheceu-os sempre. Álcool, drogas, sexo, jogo... Não se arrepende. Antes se orgulha desse processo de aprendizagem que nunca está acabado. «É preciso esbanjar e estragar muito para percebermos o que é fundamental.» O que significa hoje para Nozolino o amor dos filhos, um rapaz e uma rapariga, o da mulher com quem vive, a lealdade dos amigos e algum dinheiro para continuar. Com Al Berto partilhou todas as experiências do mundo, da vida, bebeu muito em noites intermináveis. Não toca em álcool há dez anos e lembra-se de estar completamente bêbado a tratar da filha sem nunca a ter deixado cair. «A certa altura, a pergunta é: Quero morrer ou viver? No meu caso, o instinto de sobrevivência venceu.»

Tudo começou por volta dos 15, 16 anos, através da leitura. «Alguém me passou o livro do Rimbaud, seguiu-se o Ginsberg, o Dostoievski...» Foi o primeiro acordar intelectual. Em casa, copiava à mão os poemas e as letras dos discos. Dylan e Cohen estavam entre os eleitos, mas ouvia tudo o que era rock também. Patti Smith, que veio a conhecer, é outra referência. «Queria ser músico. A música é a arte superior. Durante a adolescência, através dela atirava cá para fora todo o fel que tinha dentro de mim. Depois arranjei outra maneira de o fazer.» Agarrou-se à fotografia, mas sempre com a música como intermediária. As fotografias das capas dos vinis que partilhava com os amigos faziam dos seus ídolos verdadeiros ícones visuais. Isso interessou-o. E mesmo achando que ser fotógrafo em Portugal nessa altura era o mesmo que ser astronauta, meteu-se ao caminho. Passou pela moda, pela publicidade, pelo fotojornalismo, mas nunca quis colocar a sua técnica ao serviço de um produto. Nem deixar de amar as mulheres. «Por mim, eliminava os homens!»



RUMO À UCRÂNIA
Paulo Nozolino vive por sistema nas cidades onde moram as mulheres que ama. Foi por isso que se estabeleceu em Lisboa dez anos, habitou depois em Paris durante 13 e mora na Foz desde há sete, num regresso a Portugal transformado numa espécie de «estrangulamento». «Isto não é um país, é um espaço de indignidade. Cresci num país que tinha identidade e maneira de ser. De repente, essa noção desaparece. Portugal é Schengen, e todas as regras impostas são insuportáveis», diz, desiludido como cidadão e como pessoa.

A viagem continua a ser a solução para a sobrevivência. E o destino já está marcado. Chama-se Ucrânia. A partida está iminente. Que Europa é esta que está agora mais alargada? É a resposta a esta questão que o fotógrafo quer procurar, depois de se ter vindo a deparar com cada vez mais ucranianos na fila da sopa em frente ao Jardim Camões. «Que paraíso é este país para eles e que inferno é o de onde vêm», pergunta, ao mesmo tempo que assume: «Faço viagens para o inferno, não para o paraíso.» Com a mala pronta há uma semana, espera que o caminho lhe dê o outro lado da experiência europeia que ainda não viveu.

A saída é tão urgente quanto real é a tristeza portuguesa, cinzenta como a de 1973. «O país parou no tempo. Talvez as pessoas estejam mais gordas, porque assim que acabam de jantar querem saber o que vai dar na televisão. Mas reina uma espécie de doença intestinal, prisão de ventre, compensada por uma verborreia oral veiculada pelos políticos e intelectuais», diz, tomando para si uma atitude de puro egoísmo. «Sou um observador privilegiado desta decadência. Limito-me a ver o barco afundar-se, porque, apesar de tudo, há uma beleza enorme em ver um barco afundar-se. Eu é que não estou no barco, estou agarrado a uma tábua dentro de água.»Sem pudor, Nozolino diz que continua a ouvir o Cohen, que está aqui, que está mais velho, e que isso foi a única coisa que mudou. Em testamento, já expressou a vontade de que todos os seus negativos, provas de contacto e fotografias sejam queimados após a sua morte. «A minha história, ou sou eu que a faço ou ninguém a fará.»


Textos publicados no suplemento ACTUAL do jornal EXPRESSO de 26/01/2008

Outros artigos e algumas fotografias: http://clix.expresso.pt/gen.pl
(Pesquisar: Paulo Nozolino)

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