quarta-feira, março 12

Save my soul

As casas velhas sempre foram a minha perdição. Visitá-las, é um velho hábito que me ficou de infância, quando, em Angola e em plena fase de descolonização, muitos dos meus vizinhos abandonaram as suas casas à providência, juntamente com os bens que não puderam transportar na sua fuga desesperada.
O que me atraía naquelas casas, como o que deve atrair qualquer criança, não eram as memórias, mas antes o sentimento de aventura, de descoberta. E essencialmente, de liberdade.
De repente, e sem que fosse prontamente repreendido, eu podia mexer em tudo o que não era meu... Os objectos usados pelos adultos e sempre cobiçados pela minha curiosidade, tornavam-se finalmente acessíveis.
Se bem me lembro, foi a partir dessas experiências, que me surgiu este gosto por tudo o que é uma porta aberta. Com o crescimento, a nossa necessidade natural de descoberta, de mudança, vai dando lentamente lugar à de conforto... Um conforto por vezes baseado nas recordações, nas nossas memórias, como se elas fossem de alguma forma, garantia de estabilidade...
Talvez seja por isso, que eu actualmente goste tanto de casas e fábricas abandonadas... Que eu gosto tanto de agrupar fotografias numa história... Como se fosse uma história de banda desenhada da minha infância... Talvez seja por isso, que muitas das minhas histórias falem da vida e da morte.
Esta história que comento agora, e que intitulei “Save My Soul”, num jogo de palavras com “Save Our Souls”, como todas as minhas histórias, também ela não foi previamente pensada... Talvez apenas sentida...
Eu raramente forço um projecto. Para mim, ele ou acontece, ou não acontece.
Perante um local dessa natureza, por muito degradado ou vandalizado que possa estar, eu procuro tratá-lo o mais possível como se de um local sagrado se tratasse. O que eu pretendo é contar uma história. Não necessariamente a história do local, mas sempre uma história baseada nas memórias que revela, e na interacção que o espaço tem comigo, no que ele me transmite em termos de sentimentos, energias, ou o que se quiser chamar.
Essas memórias estão directamente inscritas não só na arquitectura do local e no seu estado de conservação, como nos objectos que eventualmente ainda por ali existam, e, muito importante para mim, na forma como eles se encontram dispostos. Como tal, eu evito o mais possível alterar a disposição desses ditos objectos. Eles estão ali por alguma razão... E até as inúmeras ocupações e destruições, me interessam como matéria-prima de imagens.
No entanto, nada invalida que possa levar para lá objectos ou fotografias por exemplo, que, qual falsas memórias, baralham toda a história do local, metamorfoseando-a, fundindo-a com a minha própria história.
De qualquer forma, situações dessa natureza, ou são perfeitamente identificáveis, ou denuncio-as em comentário às fotografias. E neste caso em particular, a única modificação que fiz ao cenário, limitou-se ao ligeiro afastar de uma cortina na parte junto ao retrato para que este ficasse melhor iluminado. Foi providencial esse gesto, porque a luz de fim de tarde, veio acrescentar aquele pequeno/grande pormenor de que esta história precisava, para ganhar sustentação. Quanto a objectos, o único objecto (ou corpo) estranho que introduzi na minha história, fui eu mesmo. Aliás, como já é igualmente um hábito antigo, mas que ultimamente tem vindo a ganhar alguma importância e até autonomia em termos de projecto fotográfico.
A história: esta história fala-nos de um espírito, um espectro, um fantasma, como se quiser. Ele está preso naquela casa, triste, melancólico, deambulando sem qualquer expressão. Apenas observando o lento degradar do mundo onde outrora viveu. E em silêncio, confronta-se com a sua morte.
Esta é apenas uma interpretação possível. É a interpretação de hoje, não é necessariamente a única... E há ainda outra característica que me interessa: visualmente a sequência tanto pode ser lida a partir de uma ponta, como de outra. As minhas histórias por vezes falam de morte, mas permanecem vivas...
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