sábado, março 29

Fotografia a preto e branco: a verdadeira arte fotográfica?

Uma verdadeira fotografia deve ser a cores, ou a preto e branco?
Embora quase tão antiga como a fotografia... (quase porque só surgiu com a invenção da fotografia a cores)... esta pergunta continua no entanto a ter alguma actualidade.
Se considerarmos que grande número de mestres da fotografia se serviram da imagem a preto e branco, podemos ser levados a concluir que as imagens assim produzidas serão mais “artísticas”.
Henri – Cartier Bresson, um dos mais famosos e reconhecidos fotógrafos de todos os tempos, dizia, além da sua mais famosa frase em que se referia ao momento decisivo, que “a realidade é a cores e a fotografia a preto e branco”. Mas será mesmo assim?
Em primeiro lugar, há que não esquecer que, quando a fotografia foi inventada, era a preto e branco. E só o foi, porque não se conhecia forma de fazer fotografia a cores. Logo, o preto e branco começou por ser considerado, não uma opção estética, mas uma limitação técnica, que muitos ansiavam por ultrapassar. (Foram comuns as colorações de imagens a preto e branco).
No entanto, apesar dessa ânsia de ultrapassar as “limitações técnicas” da fotografia a preto e branco, quando a fotografia a cores foi inventada, a técnica de preto e branco não morreu...
Porque permitia um controle mais eficaz sobre a imagem com o recurso a meios técnicos mais simples e económicos, logo mais acessível a um maior número de pessoas... Porque a imagem a preto e branco permite uma maior atenção sobre as nuances de contraste luz-sombra... Por diversas razões...
Presentemente, com a era da fotografia digital e a consequente facilidade com que hoje se intervém sobre a imagem a cores, poder-se-ia esperar que a fotografia a preto e branco perderia parte do seu encanto... De facto, perdeu o seu lugar de destaque, qual supra-sumo da arte fotográfica, junto do mercado de fotografia de arte. Mas terá sido esta técnica destronada? Ou ter-se-á antes, tornado verdadeiramente uma opção estética? E porquê? Porque finalmente, se considerarmos os aspectos puramente técnicos, as duas técnicas estarão agora finalmente em pé de igualdade?
Segundo Luciana Martha Silveira, em sua tese elaborada para o Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná, Brasil, e intitulada A percepção cromática na imagem fotográfica em preto e branco: uma análise em nove 'eventos' (1), “As discussões em torno da imagem fotográfica em p/b, geralmente, se voltam aos impactos tecnológicos na produção da imagem, não se detendo na sua interpretação visual cromática”.
Desenvolve assim, esta investigadora, a sua tese: “tradicionalmente, através dos conceitos formadores da teoria da cor, principalmente em relação aos aspectos físicos, o branco, o preto e os cinzas não são considerados cores como as outras do espectro (...). Por esta definição, todas as cores do espectro exceto o branco, o preto e os cinzas, possuem matriz definida, e são por isso denominadas 'cores'”.
Esta definição não é no entanto universal, já que, segundo a mesma autora, “a definição de cor fundamentada na presença de uma matriz, é estanque e específica, não permitindo a interação com outras visões como por exemplo, a dos pintores”. Na pintura, “podemos considerar branco e preto como possuidores de matrizes, inclusive os cinzas intermédios. (...) Leonardo da Vinci por exemplo, argumentava que o branco, preto e cinzas também faziam parte da paleta dos pintores. (...)
Outro aspecto da teoria da cor relacionada ao status do branco, preto e cinzas são os sólidos de cor, que mostram o branco e o preto como parâmetros importantes em sua construção. (...) Através da visão dinâmica da cor, podemos definir o branco, o preto e os cinzas como cores, no mesmo status que o vermelho, o verde ou o azul. Contradizendo a visão padronizada da teoria da cor, consideraremos a partir de agora que a fotografia em p/b pode ser analisada nos mesmos parâmetros perceptivos da fotografia em cores”.
Portanto, como se vê, a questão não deverá ser posta em volta das questões técnicas, mas em vez disso, em volta da percepção da cor versus percepção do claro/escuro, que traduzido em imagem fotográfica, também são cores.
Na fotografia a preto e branco, e ainda segundo a mesma investigadora, “podemos identificar perceptivamente, por exemplo, objectos 'céu' , 'montanhas com neve', 'folhagens' e 'lago', através dos contrastes entre o branco, o preto e os cinzas (...) que possivelmente vão gerar respostas cromáticas para esses mesmos objectos”.
Desta forma, “o primeiro evento de cor” (e o segundo evento componente da análise em questão) “é a percepção de elementos componentes da imagem fotográfica em p/b, através do grau de contraste (...) gerando a percepção da textura, que por sua vez colaboram na percepção do material, do tamanho e da estrutura dos objectos retratados, entre outros.” Dessa forma, “a percepção dos contrastes pode levar ao reconhecimento de objectos diversos, de pessoas, de clima, de texturas, da luminosidade, entre outros componentes. A semântica da cena será associada sistemicamente a um certo critério de coerência, determinado a partir da noção das diferenças entre os contrastes. Apenas com os recursos cromáticos do branco, do preto e dos contrastes entre eles, torna-se evidente a estrutura da forma, gerando significado rapidamente”.
Temos então, que uma imagem fotográfica a preto e branco, contém todas as características necessárias para que a nossa percepção entenda o que vê nela, como real, ou pelo menos, uma representação fiel da realidade.
De facto, foi essa a forma como foi classificada durante muitos anos a fotografia, quando surgiu, (a preto e branco) sendo que essa forma de classificar a imagem fotográfica, pretendia distanciá-la da pintura, essa sim, considerada a verdadeira arte. Nessa época, a fotografia a preto e branco, não seria artística... Seria apenas e só fotografia, sinónimo de técnica de reprodução de imagens reais.
Então o que mudou?
Como se poderá depreender pelo excerto reproduzido da análise de Luciana Silveira, a imagem a preto e branco obriga a um esforço, ainda que inconsciente, ainda que imediato, de imaginação, de visualização de cores que, de facto, não estão na imagem.
Vejamos ainda mais um excerto da tese de Luciana Silveira: “na imagem fotográfica em p/b, as traduções cromáticas são percebidas através do reconhecimento do objeto e da comparação (em nível inconsciente) da primeira percepção visual com a interpretação anterior deste objeto a partir da memória pessoal”. Esse factor, tal como num romance, onde o leitor visualiza a imagem que lhe é sugerida pelo autor, proporciona a quem observa a imagem, um prazer diferente que aquele que experimenta perante a visualização de uma imagem a cores. Além do que, ao invocar a memória, adapta-se como uma luva a uma das mais importantes funções da imagem fotográfica: algo que se regista “para mais tarde recordar”, como habilmente anunciava uma conhecida marca de filme e equipamentos fotográficos.
Serão esses os principais factores que levam a que, comummente se considere a fotografia a preto e branco mais artística. Porque mais exigente no que toca à sua interpretação orgânica, à interpretação dos componentes constituintes da imagem em si. E também porque mais “verídica”, não em termos de fidelidade ao objecto fotografado, mas em termos de função, de finalidade. Porque mais próxima da evocação de memórias... Mas será esse, um factor decisivo?
Se o considerássemos assim, teríamos igualmente de considerar por exemplo, o cinema como menos artístico que um romance, já que está para este, em termos de exigências imagéticas (imaginativas), como a fotografia a cores está para a de preto e branco.

Mas no entanto, o cinema é antes de mais, uma outra forma de arte. Que nos permite explorar/apreender, outras narrativas. Assim acontece igualmente com a fotografia a cores, em oposição à fotografia de preto e branco. Porque também a cor é uma forma de memória, embora diferente, e porque também se contam histórias... Como é comum hoje em dia, por exemplo, no foto-jornalismo...
Além disso, a fotografia a cores pode aproximar-se mais que a fotografia a preto e branco, da pintura e dos seus jogos cromáticos. Com a era digital e a possibilidade técnica de realização de formatos gigantescos antes impossíveis (também no preto e branco) a aproximação da fotografia de arte à pintura, ganha outro fôlego, porque passível agora de ser apresentada em grandes salas, em grandes museus... Igualmente, através das possibilidades (e facilidades) que a manipulação digital permite, a fotografia a cores deixa de se limitar ao “real” e pode passar a ser uma construção ou melhor dizendo, uma reconstrução pictórica desse mesmo real.
Veja-se o exemplo de Andreas Gusrky, considerado o mais famoso herdeiro da chamada Escola de Dusseldorf, movimento iniciado por por Brend e Hilla Becher, de quem foi aluno (e que ironicamente, contestavam o uso da fotografia como forma de arte por direito próprio, considerando-a simplesmente como “um substituto para o objecto”). Embora actualmente distante do conceito que deu início ao movimento em questão, Andreas Gursky usa, tal como os percursores do movimento em questão, todas as potencialidades da da impressão em grandes formatos, mas neste caso, para produzir imagens pictóricas onde, recorrendo às possibilidades da fotografia digital (ao contrário dos seus professores) mistura em doses extremamente pensadas, realismo e manipulação.
Segundo escreve David Santos no site ARTE CAPITAL (2), “As fotografias de Andreas Gursky são limpas e meticulosas, de grande formato, a fazer lembrar a melhor e mais ambiciosa arte pictórica. Este alemão, aprendiz de feiticeiro (...) retém da imagem fotográfica mais do que a sua função narrativa ou simbólica, pois o seu trabalho opera numa dimensão mais vasta, onde se cruzam, de modo subtil, ilusão e realidade, experiência simultaneamente visual e reflexiva, marcas essenciais de uma certa especificidade da criatividade artística. Recorrendo a excepcionais condições técnicas, partindo sobretudo das possibilidades oferecidas pelo processamento fotográfico electrónico, Gursky recusa o conceito mais comum de instantâneo e remete a sua atenção para uma zona sensível de permanência visual que exige, ao mesmo tempo, uma redobrada atenção por parte do receptor da obra de arte”.
É certo que estamos aqui numa fronteira perigosa, onde já não se sabe muito bem, se continuamos a falar de fotografia... É certo igualmente, que o mesmo poderá ocorrer com uma imagem a preto e branco... Mas essa técnica, ou forma de expressão, está mais vocacionada para outras funções... A imagem a preto e branco, pelas características já assinaladas, adaptar-se-á melhor à construção narrativa de uma memória. E mesmo que essa narrativa seja totalmente ficcionada, transmite sempre uma sensação de veracidade.
Emancipada que está da sua irmã mais velha, a pintura, a fotografia a preto e branco, que também não se deixa confundir com o desenho a carvão, (actualmente quase apenas usado no retrato clássico), sobrevive assim ao passar do tempo e do aperfeiçoamento tecnológico, tornando-se uma forma de expressão de grande valor narrativo e estético.
Qual será então o veredicto final de toda dialéctica que opõe o valor artístico da fotografia a cores ao da fotografia a preto e branco? Penso que se poderá declarar o empate... Além disso, como vimos na tese de Luciana Silveira, o preto e o branco, não só também são cores, como, em fotografia, conduz à percepção das cores. Logo, esvazia-se mais ainda a oposição preto e branco versus cor...


João Paulo Barrinha




(1)- A TESE DE LUCIANA MARTHA SILVEIRA

(2)- REFERÊNCIAS A ANDREAS GURSKY

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