sábado, abril 12

O teatro da Realidade

(Uma análise em três actos)

Acto I

É um facto, que a fotografia tem aquela qualidade quase mágica de fazer parar o tempo. De forma figurada, um simples microsegundo pode ser estendido quase até à eternidade... Com isso, além de ganhar um prolongamento muito generoso da sua vida, o dito microsegundo ganha igualmente notoriedade. Porque, quando ele acontece (e está sempre a acontecer) se não houver por perto um fotógrafo, ele será apenas mais um de entre todo o devir de segundos que acontecem a cada momento.
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A fotografia, na sua forma mais directa, é, não apenas mais uma forma de fazer história, mas uma das suas melhores ferramentas. Porque não a faz apenas, mostra-a! E não apenas uma história política ou social, como também a história íntima de cada um, de cada família. Além disso, se por um lado, a fotografia é essencialmente um registo histórico da vida, seja da vida social da humanidade, da vida da natureza, da vida mental do fotógrafo que executa a fotografia, ou de uma intrincada mistura de todos esses factores, por outro lado ela não é nunca o registo de um só momento, mas de uma coincidência, que é muitas vezes tanto feliz como imprevisível, de vários momentos e onde se cruzam o momento do fotografado, ou do acontecimento e o momento (vida) do fotógrafo. No entanto, fácilmente nos esquecemos desse factor e idolatramos o momento certo (como se houvessem momentos mais dignos de existir que outros) idolatrando seguidamente o fotógrafo que o conseguiu congelar, capturar.
Ao fazê-lo, esquecemo-nos muitas vezes que se aquele momento está assim registado, isso deveu-se à tal feliz coincidência de inúmeros factores da vida, relativamente aos quais o fotógrafo é muitas vezes, perfeitamente alheio.
Mas a fotografia congela essa vida, congela o mais fugaz e insignificante momento, seja ele qual for, e torna-o eterno. Aí, se não houver o necessário cuidado de análise, começa a perversão: quando se observa uma fotografia apenas admirando o momento, fica-se também congelado, mas em nada, em lugar nenhum.
É a eternidade aqui e agora. Todos os dias, a qualquer instante! E quem a criou? O Deus fotógrafo.
Embora (e a bem da justiça) tenhamos de admitir que o fotógrafo é, e será sempre, um factor fundamental na execução de uma imagem fotográfica, (excepção feita, claro, às fotografias obtidas automaticamente, como por exemplo através de satélites)... Embora também tenhamos de admitir que um bom fotógrafo terá mais chances de obter um melhor resultado (seja isso o que for) em todos os sentidos, que um mau fotógrafo, teremos igualmente que admitir, a bem da lógica, que factor fundamental não é o mesmo que factor único determinante. E que, muitas vezes, mesmo um bom fotógrafo, ou mesmo um considerado mestre, não tem consciência do propósito ou resultado da sua acção. Não pensa, faz!

O mais brilhante dos momentos captados, porque o mais fugaz de todos, resulta muitas vezes de um instinto tanto virtuoso e bem treinado, como animal.

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A história desta IMAGEM estava eu em pleno Alentejo em viagem turistico-familiar, quando, do outro lado do passeio de onde eu estava (distraidamente a falar com o meu sobrinho) passam esses dois homens... O que me chamou a atenção para essa imagem, foram as sombras. Eu sou "fanático" por sombras, porque a sombra é o princípio básico percurtor do desenho, e por arrasto, de toda a arte. Nesse caso em particular, as sombras das árvores com as dos homens entre elas, pareceu-me um bom tema. Quando achei que o momento tinha chegado, click. E continuei a minha conversa, sem mais me preocupar com o assunto. Foi só quando vi o negativo, que me apercebi que algo não estava bem... E foi somente quando fiz uma pequena prova em formato 10x15, sem muitas exigências, só para ver o que estava mal, é que percebi o "gato". Essa imagem tem alguns anos e só agora a mostrei a alguém, além de alguns amigos. E nunca mais fiz outra prova dela... Porquê?Para começar, porque não lhe dou muito valor. Foi um momento de sorte, nada mais. Ainda por cima, não me apercebi dele...

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Valorizar o momento como algo que deve ser o ponto máximo da perfeição fotográfica, é uma forma de manipulação tal como a denominada arte digital. E talvez, arrisco a dizê-lo (embora reconheça que esta afirmação pode ser polémica) se mal usado, pode ser ainda menos ético, que uma montagem disfarçada de momento real. Porque a montagem, por perfeita que seja, é sempre potencialmente desmascarável. O momento perfeito, não. Por um determinado momento, pode-se distorcer a realidade de todos os outros... Isso faz-me perguntar: afinal onde está a verdade? Numa imagem composta segundo uma determinada ideia? Ou numa outra, que, captada num "contra-momento" em relação ao correr de todos os outros, é valorizada como sendo A fotografia que define aquela situação em causa? Não é fácil concluir...

Por outras palavras ainda: será que o “Moment Décisif” de Cartier Bresson, é MESMO o Moment Décisif? Do ponto de vista puramente fotográfico, com certeza que sim, não fosse o Cartier Bresson o grande mestre que foi. Mas não é a mestria do autor que aqui pretendo analisar, mas sim a justeza da escolha do momento que irá definir uma determinada situação...
Porque, com ou sem formação adequada, com ou sem consciência, o fotógrafo é sempre um juiz da história. O momento que ele escolhe como digno de registo, é o que, potencialmente, ficará na história. De todos os outros, ninguém se lembrará passadas poucas gerações.Mais uma vez em relação à minha fotografia, o momento que eu escolhi, embora inconscientemente, surrealiza a realidade. Esta minha imagem, representa a realidade... Mas não é lida como tal. Será isso uma forma de manipulação? Onde está a chamada verdade da fotografia? Ainda existe? Ou será que, com todas as manipulações que podemos fazer com ela (digitais ou não) essa "verdade" nuca existiu?
Não se pretende com isto dizer, no entanto, que o momento fotográfico deva ser totalmente desvalorizado, apenas que não deve ser sobre-valorizado. Pois é essa sobre-valorização do momento, a par de uma outra sobre-valorização, a de uma certa ideia de composição enquanto enquadramento perfeito (esquartejado) que corrige uma vida imperfeita ao engaiola-la num quadrado ou numa qualquer proporção rectangular, que desvirtua a verdadeira essência da fotografia.

Acto II

Veja-se por exemplo muito do trabalho de William klein*. Que, “com os seus instantâneos (...) criou uma rejeição inflexível das regras da fotografia então prevalecentes”. Ao nível da composição, o seu trabalho é muitas vezes imperfeito segundo as regras mais tradicionais relativas ao enquadramento fotográfico.
William Klein, que recebeu formação em pintura, “descobriu a paixão pela fotografia no início dos anos cinquenta. Inicialmente utilizou-a como ferramenta de expressão abstracta, mas cedo ficou fascinado com as suas possibilidades de lidar com o mundo real”. Embora tendo feito vários trabalhos para revistas de moda, Klein queria apenas (segundo o próprio) fazer “fotografias reais eliminando tabus e clichés”. Era a vida que aquele fotógrafo pretendia retratar! Se de forma imperfeita, é porque a própria vida não é ela mesmo perfeita. Wlliam Klein, não se limita a mostrar a fase final da construção da imagem, encerrando um momento capturado numa gaiola perfeitamente higienizada, a moldura. Em vez disso, muitas vezes mostra de forma visceral todo o seu processo criativo, todo o processo de manipulação, enquadrando-o no resultado final. Raramente se limita a apresentar uma única imagem, um único momento de uma determinada situação, mas os momentos anteriores e posteriores. Frequentemente também, apresenta provas de contacto riscadas, onde se poderiam ver as imagens rejeitadas e as reenquadradas. Todas elas, seriam o seu resultado final. Com esta atitude perante a fotografia, William Klein influenciou muitas gerações de fotógrafos contemporâneos, e seguindo a sua própria lógica, acabou por praticamente abandonar a fotografia, dedicando-se durante algum tempo à produção de imagens em movimento, tendo produzido “contributos cinematográficos politicamente comprometidos e não convencionais” que o colocaram “na posição de dissidente. Só no início dos anos oitenta, é que Klein voltou a fazer novamente imagens paradas.”

Acto III

A fotografia, a par de todos os outros tipos de ilustração, (incluindo as pinturas rupestres) poderá também ser vista como uma forma de escrita, da escrita do visível. Segundo essa óptica, a fotografia pode ser considerada como uma das mais recentes formas de linguagem inventadas, que se destina a registar, reproduzir e interpretar, o que se vê e não o que se ouve. Daí que a perversão que dela emana, seja tanto mais grave quanto mais se pretende que essa escrita seja fiel ao real que é descrito. Porque, uma vez que se trata inevitavelmente de um registo do que alguém viu, transporta na sua génese, a subjectividade desse mesmo alguém que viu. E como vimos, mesmo um autor como William Klein acaba por assumir a sua subjectividade...
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Mas a pretensão do uso da fotografia como verdade, como prova de um acontecimento, mais do que isso, como símbolo de uma era, é uma pretensão que existe na fotografia documental ou jornalística.
Como exemplos práticos, analisemos sob esta óptica duas fotografias jornalísticas. Primeiro, a famosa fotografia do Vietcong morto pelo Coronel Nguyen Ngoc, conhecida por “saigon execution”: nessa fotografia, o momento está perfeito. Não podia, aliás, estar mais perfeito! Pode-se ver que o militar não só empunha a pistola na direcção da cabeça da sua vítima, que pressente já a morte, como efectivamente, já pressionou o gatilho. Ao fazê-lo, a sua acção coincidiu perfeitamente no tempo, com o pressionar do botão disparador da máquina fotográfica do repórter.
A analogia é perfeita. Ambos dispararam. Mas os resultados dela, não poderiam ser mais divergentes: o disparo do fotógrafo, deu vida eterna ao preciso momento em que a viagem da bala, deu a morte àquele homem.
Com isso, a fotografia daí resultante ganhou automaticamente uma importância e um estatuto, só dispensados às grandes obras de arte. É o fugaz instante que separa a vida da morte, eternizado.
Com isso, a morte nunca acontece, a vida eterna é fotografia! Está lá tudo em suspenso... A arma, a bala (provavelmente ainda a entrar na cabeça da sua vítima)... E finalmente a vítima, que ainda não teve tempo sequer para sentir a morte, mas já a pressente. Uma obra prima!
Mas na realidade, morreu um homem de forma brutal e violenta! Essa é a verdadeira realidade que mostra aquela fotografia! A fotografia, arte ou não, é sempre informação. Esta não é decididamente uma fotografia de arte, logo, é desajustado se não mesmo aberrante, tentarmos classificá-la segundo regras de composição, ainda por cima, se essas regras forem as mais exigentes regras da Fine Art fotográfica. Mas, não sendo arte, esta fotografia tem uma informação muito fotográfica... Que é o chamado "Moment Décisif"... Mas, no entanto, há também um vídeo desta situação... Então porque é que a fotografia é tão importante? No preciso momento que esta fotografia retrata, alguém (igualmente num momento decisivo) passou em frente à câmara que estava a filmar...E temos novamente o paradoxo, a divergência de resultados... Em ambos os casos, houve um momento decisivo... Mas num deles, houve um click, ficou registada uma imagem. No outro, o click foi inverso, apagou-se uma imagem. Portanto, fotografou-se o momento da morte. Aquele milésimo de segundo que separa o ser do não ser... alguém.

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O momento, principalmente no que respeita à fotografia jornalística, tem ainda outra magia: ele é a prova de que “o repórter estava lá”. Ele foi testemunha do acontecimento, da notícia... Da mesma forma, quando o repórter não está lá, raramente a notícia acontece...
Perante esta imagem, ninguém poderá dizer que o presumível “oficial vietcong Nguyen Van Len” não morreu ali mesmo, em vez de noutro qualquer sítio.
Nas palavras de Horst Faas,** fotógrafo e editor reformado desde 2004 da Associated Press, “os 12 ou 14 negativos nesse único rolo de película, culminando no momento da morte para um Viet Cong, propeliram Eddie Adams para a fama por toda a vida. A foto da execução nas mãos do Coronel Nguyen Ngoc ao meio-dia de 1 de Fevereiro de 1968 representa hoje a brutalidade do nosso século passado”.
Mas ironicamente, não se sabe o nome do homem que morre. O registo mais aproximado que ficou, é de que se tratará “presumivelmente o oficial vietcong Nguyen Van Len”. O próprio assassino, o Coronel Nguyen Ngoc, segundo outras fontes, seria General e chefe da polícia de Saigão. Somente o fotógrafo é o mesmo...
Perante esta imagem, e não se contentando com a porção de real que ela consegue nos mostrar, fala-se da brutalidade do nosso século, da fama que ela proporcionou ao fotógrafo que a fez, fala-se de muitas coisas, mas todas elas, com valores subjectivos.
Como se o facto de um repórter ter tido a felicidade e o profissionalismo de se encontrar naquele local, realizando o seu (excelente) trabalho, fosse suficiente para o transformar em herói, qual Messias mensageiro da verdade... Como se a violência de todo um século, se pudesse resumir numa única morte violenta... Como se não tivesse acontecido Hiroxima...
É o pequeno microssegundo inflacionado até ao infinito... Acompanhando esse inflacionar, o poder da imprensa cresce na mesma proporção.
Numa sociedade dividida entre uma informação controlada ora pelo estado ora pela economia, a imprensa necessita de demonstrar o como é essencial às sociedades. Por isso é sempre útil que hajam icones que vão alimentando a ilusão de que tem um papel de charneira junto das forças político-económico-sociais que governam as sociedades de hoje.
Por isso, além de todas as razões já apresentadas, esta imagem foi tão emblemática, tão venerada... Podemos hoje dizer que foi pelo facto de ter sido uma imagem marcante da guerra do Vietname... Sim, de facto... Mas não é isso que faz a história desta imagem. É o momento.
Um homem morreu de forma brutal. Hoje, já ninguém sabe com exactidão sequer de quem se trata. P
ara muitos já pouco importa tudo o que aconteceu no Vietname, mas o momento que valeu o Pulitzer, esse continua bem vivo até hoje! Porque o momento é eterno. Ele está ali, sempre, para provar que o repórter estava lá. Que o repórter é o mensageiro incansável, imperturbável que cumpre a sua missão, seja em que condições forem.
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Analisemos ainda um segundo exemplo. A mais famosa fotografia do mundo, o registo do momento da morte de um soldado na guerra civil Espanhola, realizado por Robert Capa. O que se diz dessa fotografia hoje em dia? Para começar, precisamente, que é a mais famosa fotografia do mundo. Depois, as opiniões dividem-se entre os que a consideram o resultado de um momento perfeito e os que a consideram uma fraude.
Mas vejamos a seguinte descrição:***
“…Rita Grosvenor, uma jornalista britânica destacada em Espanha, informou que um cidadão espanhol, chamado Mário Brotóns Jordá, havia identificado o homem da fotografia de Robert Capa como um tal Federico Borrel Garcia, que havia sido abatido na batalha de Cerro Muriano a 5 de Setembro de 1936. (…)…nos arquivos de Madrid e Salamanca havia um documento em que se afirmava que apenas um homem das milícias de Alcoy havia morrido em Cerro Muriano (…) Quando Mário Brotóns mostrou a fotografia de Robert Capa à viúva do irmão de Federico Borrel, ela confirmou a sua identidade.
(…) O facto perturbador de que o soldado aparece com as plantas dos pés apoiadas no chão, assim como a forma particularmente perturbadora como o homem sustém o seu fuzil (que indica que não o estava a usar naquele momento), levaram-me a reconsiderar a história que Hansel Mieth, fotógrafa da revista Life, me transmitiu em finais dos anos trinta (…). Segundo Mieth, Robert Capa havia-lhe contado um dia, muito alterado, as circunstâncias em que havia realizado a sua célebre fotografia:
Estavam a fazer palhaçadas – disse ele. Todos estávamos a fazer coisas muito tontas. Mas estava tudo a correr muito bem. Não havia disparos. Desciam a correr pela encosta. Eu também corria.-Pediste-lhes que encenassem um ataque? – perguntou Mieth.- Absolutamente. Estávamos contentes. Se calhar estávamos um pouco loucos.- E então?- Então, de repente, aquilo converteu-se em algo real. A princípio não ouvi o disparo.- Onde estavas tu?- Ali mesmo, um pouco adiantado e ao lado deles.
(…) Robert capa limitou-se a acrescentar que aquele episódio o havia atormentado muito (…) que se sentia parcialmente culpado pela morte daquele homem. (…) … a publicação da fotografia nas revistas Vu e Life (…) foi amplamente aclamada como a mais impressionante e directa fotografia de guerra de todos os tempos.”
A acreditar nestas palavras, temos aqui um exemplo ainda mais perverso. A ser verídico este relato, e sem desprimor algum por toda a carreira do seu autor, a dita imagem nunca deveria ter sido publicada. Mas tudo o que importa é o momento. É esse o teatro da realidade.


Texto: João Paulo Barrinha



Nota: agradeço ao António Gomes, Rui Marto, Miguel Teixeira, Nuno Silva Campos e Sérgio Marques, participantes do FÓRUMFOTOGRAFIA.NET, pela ajuda preciosa que deram a esta pesquisa. Partes desta reflexão, foram inspiradas na leitura do livro "A câmara Clara" de Roland Barthes (colecção: arte & comunicação, edições 70).

*ALGUMAS IMAGENS DE WILLIAM KLEIN (As referências a William Klein que se encontram entre aspas, foram transcritas do livro: Fotografia do Século XX, Colecção do Museum Ludwig de Colónia, editora Taschen).

**CITAÇÕES DE HORST FAAS

***DESCRIÇÃO E FOTOGRAFIA DE ROBERT CAPA

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