domingo, maio 4

O HOMEM

Ó amigo! Esteja à vontade! Eu entendo a fotografia!... A fotografia é quando uma pessoa vê uma imagem real e essa imagem lhe chama a atenção para fazer outra imagem.
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Estas palavras foram as primeiras que o homem aqui retratado me disse quando lhe perguntei se poderia tirar um retrato. Pouco depois, o que se seguiu foi (presumo eu) toda a história da sua vida, descrita de forma caótica. Não me lembro de uma única palavra dessa conversa de pelo menos, meia hora, em que eu apenas acenava com a cabeça e sorria. Enquanto, igualmente, ia pressionando o botão de disparo da máquina fotográfica, que apontava o melhor possível à sua cara, sem ver o resultado do que estava a fazer...
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O digital trouxe essa grande vantagem: fiz imagens a partir de uma imagem real, a conversa/monólogo caótica até encher o cartão. Com filme, seria impensável eu aproveitar uma situação destas... Só tenho pena de não ter gravado também o som, mas que importa isso? Aquele homem, de quem não fiquei a saber sequer o nome, tinha vontade de contar todas as suas mirabolantes histórias, eu só tinha que o ouvir. Era o que tinha para lhe dar em troca das imagens que ele me dava...
O digital não é apenas uma técnica diferente de obter imagens. Muito mais que isso, permite-nos agir perante a imagem, (a imagem da realidade) in loco, de uma forma muito diversa do que se estivéssemos a usar um rolo de fotografias. No digital, podemos ver logo a imagem, e essa aparentemente pequena diferença, faz toda a diferença, não tanto para o fotógrafo, mas para o processo que leva à construção da imagem. Porque nos facilita muito uma ferramenta muito válida: a convivência...
O mostrar do resultado ao fotografado, naquele momento, é também dar-lhe algo com que ele alimentará o seu espírito, uma outra forma de estabelecer contacto, de iniciar uma relação, que por muito fugaz e superficial que seja, é sempre uma relação... Com isso, ganhamos automaticamente a confiança da pessoa que fotografamos. Podemos, de início, transformar essa pessoa em actor ao serviço de uma sessão de fotografia... Mas isso também acontecia antes... No entanto, e se não for essa a nossa intenção, com o processo digital podemos mais facilmente ir além dessas poses, mostrando as imagens até que o retratado se satisfaça ou se farte de representar... Depois, começamos a fazer as nossas imagens...
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Mas esta composição tem para mim um significado muito mais profundo que apenas o corolário de uns registos completamente espontâneos: após finalizar esta composição com alguns dos instantâneos mais conseguidos, ocorreu-me que esta é uma boa imagem para ilustrar o que realmente me interessa na fotografia e uma boa parte dos meus processos de trabalho.
Para começar, a frase que o homem me disse logo ao início... Ela tem tudo a ver com o que eu procuro na fotografia: uma imagem construída a partir de uma imagem real. É essa a essência da imagem fotográfica, e quando tantos teóricos e filósofos dissertaram sobre as características e limites da fotografia relativamente à sua capacidade de reproduzir/manipular a realidade, com tanta tinta gasta em tantas teorias, um homem simples mas extremamente perspicaz, produz numa só observação, o que pode bem ser uma boa definição de fotografia: uma imagem criada por alguém que vê uma outra imagem. Pois isso é o que eu procuro na fotografia: criar imagens a partir de imagens.
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Essas imagens podem ser puramente reais, ou, como nos diz o homem da fotografia, uma imagem real que nos chama a atenção. Uma imagem real que, para nós, e segundo a nossa forma de ver o mundo, se torna uma imagem especial e digna de registo... Melhor: digna de ser transformada numa outra imagem.
E quais são as imagens que me interessam? Muitas e diversas, mas todas com um ponto em comum: o facto de poder com elas, estabelecer ligações a algo que eu sinta ou simplesmente a alguma situação vivida, por muito fugaz, por muito insignificante que possa parecer.
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A minha procura é pela essência. Faço fotografia pretendendo levantar questões relativas ao meio fotográfico em si, preocupações de carácter conceptual... Muitas vezes, exploro a técnica de agrupar várias imagens numa só, para que seja o conjunto ele mesmo uma imagem, e não cada fotografia, que para mim, não passa como que de uma peça de um puzzle/imagem, que eu desmonto de uma determinada imagem que faço da realidade (ou imagem real) e remonto novamente.
Por vezes, ou quase sempre, a imagem final depois de montada, nada terá a haver em termos de sequência espacio/temporal, com a imagem que lhe deu origem. Mas que importa, se essa é uma imagem feita a partir de uma outra imagem? Com todo este processo de desconstrução/reconstrução do real, pretendo que as imagens continuem dinâmicas, vivas... Como a própria vida, que continua seguindo o seu rumo, indiferente à imagem a que deu origem... As “regras” de composição, da procura de equilíbrios perfeitos, se permitem enquadrar devidamente uma imagem, também a prendem, engaiolam-na, retiram-na do contacto com a vida... As minhas montagens, mais não são muitas vezes que puzzles imperfeitos, onde dá sempre vontade de mudar uma imagem de sítio... Depois outra, e outra... A satisfação nunca é total. Com essa insatisfação, a imagem mexe-se. Evolui, caminha...
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No entanto, e apesar deste desconstruir e reconstruir do espaço/tempo retratado, há um aspecto que procuro sempre manter nas minhas composições: o espírito do local, ou da situação vivida. Ou melhor: o espírito da imagem mental com que fiquei, ou sensações que me despertou esse mesmo espaço ou situação. Essa imagem mental, é o que eu chamo de imagem imaginária, e será a essência, o espírito da imagem fixada, da imagem visível. Com essa imagem, farei futuramente outras imagens, que por sua vez possuirão o seu próprio espírito ou essência, e por aí a diante, num processo evolutivo (ou não) que nunca para.
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Neste caso em particular, o espírito do momento, (a imagem imaginada) foi o de uma conversa/monólogo (monólogo, porque só o homem falou... conversa, porque eu respondi com a criação de imagens) algo caótica, algo dramática por vezes, mas sempre serena e equilibrada no seu global... E que acabou por ser uma grande lição de fotografia. Foi assim que eu senti a situação, é assim que eu a retrato. No entanto, esta composição/imagem pode sugerir ainda outras images... Que terão que ser imaginadas...
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Esta imagem foi obtida no Mercado Municipal de Torres Vedras, onde me encontrava a estudar algumas situações que me poderiam interessar sob o ponto de vista fotográfico, porque estou a iniciar um projecto colectivo de carácter documental sobre aquele espaço e as pessoas que o frequentam, assim como os vendedores que lá trabalham.
Ao contrário de muitas outras vezes que frequentei aquele local, agora precisarei de observá-lo com olhos de fotógrafo. Daí a minha necessidade de me ambientar, de contactar com as pessoas de uma outra forma...
Para isso, e apesar de ter, de início, decidido que realizaria o dito projecto recorrendo apenas ao processo químico de preto e branco, resolvi fazer algumas imagens experimentais em digital, só para “aquecer”...
Mas esse “aquecimento” fez-me mudar de ideias relativamente ao meu projecto... E ensinou-me algo mais sobre fotografia.


A IMAGEM

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