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sexta-feira, fevereiro 1
COM SUMO OBRIGATÓRIO Textos do Catálogo
O AUTO-RETRATO AUSENTE
«A imagem que possuo da morte
é a de um pássaro brusco sulcando o chão
por isso todas as fotografias estão repletas de mel
mas vazias de ti».
Al Berto
O campo da fotografia é, não raras vezes, tomado como um espaço dominado pela presença fragmentária de elementos de um tempo e espaço do que “já foi e não volta a ser”. Lugar de fronteira e, paradoxalmente de libertação, existe no médium fotográfico a presença oculta do corpo que carrega no disparador – o auto-retrato ausente de uma indelével alma fotográfica. Território de uma constante performance, o regisro fotográfico, além de “espelho” (obtuso e também fragmentário) de um real ou de um “real” imaginário, procura recorrentemente assumir-se suporte de um discurso.
João Paulo Barrinha, neste conjunto de obras, auto revela-se, desvelando, em simultâneo, um conjunto de possibilidades e linguagens artísticas que correspondem a duas funções distintas: interrogar e afirmar. Mais do que técnica, a obra de Barrinha é, neste sentido, a materialização de um pensamento, uma permanente (re)construção discursiva, reveladora de um gutural apelo ao próprio imaginário do espectador. Mais do que um fotógrafo, João Paulo Barrinha procura, sem complexos, afirmar-se um “storyteller”.
“Com sumo obrigatório Imagens & Escritas” revela-se tanto um exercício técnico e estético, como um conjunto de micro-narrativas que, encontrando o seu sentido numa relação simbiótica de imagens, encerram um permanente jogo dialógico entre médium e mensagem, transmutando-se em verdadeiros “micro-climas da imaginação”.
Fotografia, video, instalação e catálogo, afirmam-se, neste trabalho, como elementos distintos; peças fragmentárias de uma conceptualização nuclear que encontra no recurso à imagem uma extensão da sua expressão.
Mário Verino Rosado
Imaginar é construir/subir a escada que leva à verdadeira dimensão interior, sem esquecer que são os primeiros degraus que a sustentam. Imaginar é alimentar-se do mundo.
Das minhas fotografias, as que mais gosto são aquelas em que consigo captar o seu momento indeciso… Passada a manipulação jocosa (e um pouco abusiva) da célebre maxima de Henri Cartier-Bresson, o Mestre de “les moments décisifs”, o que me fica desta frase é que ela resume, de forma razoavelmente precisa, alguns dos meus trabalhos. Onde, de forma algo ruminante, angustiada, contraditória, procuro uma imagem imaginária mas nunca imaginada. (No sentido de imagem não materializada. Ou mesmo de imagem idealizada mas nunca totalmente consciencializada).
Algures entre o quase tudo e o coisa nenhuma, parto de intervenções pictóricas simples e de referências estéticas diversas, para uma procura de equilíbrios nas contradições, um processo onde as fotografias se associam a bem do todo, enquanto lutam pela sua identidade, tornando-se como que em átomos, células, órgãos, de um virtual (ou latente) organismo/imagem. Sempre mutante, sempre o mesmo.
No projecto “Com sumo obrigatório Imagens & Escritas”, ao organismo/imagem associa-se ainda uma narrativa/alma. Também ela uma narrativa aberta, mutante, imaterial. É, a princípio, uma caricatura ao consumo desenfreado de bens materiais, a que assistimos nos nossos dias. Mas é também um retrato de outros consumos…
Na primeira parte, representa-se em sete painéis orgânicos, uma modelo em plena sessão fotográfica, tendo como cenário, um solar antigo. Primeira ironia: a modelo, não passa de uma boneca desmembrada. Mas, se essa condição nos pode remeter à iconográfica beleza grega, a ironia está no facto de essa mesma beleza só existir como vestígio deteriorado. O mesmo se passa com a boneca. Com o cenário pilhado. Ou mesmo, com a própria fotografia. Tudo isso, vestígios deteriorados de um passado.
E ainda, porquê o moedor de carne/cabeça? As fotografias coladas no ventre? Os outros adereços? Qual o simbolismo de tudo isso? Também aqui, as ambiguidades e contradições, a fazerem trepar a imaginação (no sentido de criação de imagens).
Na segunda parte, através do vídeo caseiro (ou diaporama com colagens, em formato vídeo?), a que dei o nome de “CorpUS, SexUS & PanicUS”, e das duas fotografias (montadas sobre espelho), intituladas “DecaShake” (I e II), transporto-me a um espaço não palpável, não mensurável. O espaço psicológico, o que pretendo verdadeiramente retratar. Num tom sempre irónico, faço então o retrato de uma sociedade neurótica. Onde se vende sexo seguro, mas onde impera a insegurança na intimidade. Uma sociedade feminina, não no sentido de fêmea, antes de mãe. Mãe decadente, não necessariamente na óptica da moral Judaico – Cristã, mas porque gera filhos desmoralizados, desmoronados até! Que apenas anseiam renascer num outro enquadramento, uma outra mãe. A mãe céu, em ultima instância para alguns. Em resumo, uma sociedade em permanente conflito existencial. Ou inexistêncial…
No vídeo, apercebemo-nos essencialmente de um relato de emoções íntimas.
Não necessariamente (e também) as minhas. São aquelas que nos levam a consumir. E que nos consomem! Mas podemos vê-lo igualmente, como um jogo enigmático…
É quando percebemos que o jogo está em toda a exposição. Ou na própria vida. Um jogo onde me duplico em ambíguas personagens. Onde me exponho, ao mesmo tempo que me protejo do meu próprio olhar. (Como todos nós?) Enquanto que a solução desse enigma, o degrau mais alto, só se revelará no íntimo de cada um.
O catálogo, a espuma das memórias deste projecto, é também uma outra exposição possível. Enquanto que a dicotomia exposição/catálogo, alimenta-se de uma realidade com a qual conspira, para, interagindo com o observador, fazer surgir um espaço/ambiente pluridimensional imaginário (ou idealizado), onde todos nos poderemos ver reflectidos. Ou não. Contraditoriamente, ou também não, será um espaço contido, harmonioso, calmo, caos organizado. À procura de uma certa paz.
É tudo isso, o sumo obrigatório. Um convite a uma viagem ao interior do ser.
João Paulo Barrinha