Uma criança que passa ao colo do seu pai ou mãe (não interessa para o caso) deixa cair a chupeta.
Seguidamente, alguém que passa, vê a chupeta no chão. Deduz facilmente que esta pertencerá a um qualquer bebé que a tenha deixado cair e, como bom cidadão, resolve pendurá-la pela corrente, na grade metálica que se encontra logo ali.
Segue o seu caminho, totalmente esquecido da acção que acabara de ter, enquanto a chupeta, qual objecto inanimado, não pode ter consciência do seu significado quando pendurada naquelas grades. As grades são de um cemitério. Podiam ser de qualquer outro sítio, podiam até ser de uma vivenda, de um solar. Mas não, são de um cemitério. Além disso, está nevoeiro. Há ainda uma estrada e uma passadeira que a atravessa. O cenário está montado...
Tão igualmente por acaso como tudo o resto, aparece um fotógrafo acompanhado do seu irmão.
A mente do fotógrafo, funciona por símbolos. Os objectos, as pessoas, os edifícios, para ele não são objectos pessoas e edifícios. São símbolos, ou linhas geométricas. Que importa compor, seleccionar, ou simplesmente registar, guardar. Encerrar dentro de uma “gaiola”, desconstruir, reinterpretar. Para mais tarde recordar. Para mais tarde admirar.
Onde todos vêm um simples arranha-céus espelhado, um fotógrafo pode ver um monólito da sabedoria, qual monólito do famoso romance 2001 ODISSEIA NO ESPAÇO, colocado na terra por uma civilização avançada, com a função de dar “o sopro da inteligência” à humanidade e acompanhar/registar todos os seus progressos. Para um fotógrafo, um edifício pode ser um Deus tecnológico... Ou a personificação de todos os males, qual casa do Diabo onde se tortura a humanidade afastando-a da natureza.
O fotógrafo não vê a realidade como o comum dos mortais. Vê antes, uma outra realidade.
No caso da fotografia que ilustra este texto, a realidade é tão simples como uma chupeta que um bebé perdeu numa noite de nevoeiro, ao passar junto ao cemitério, provavelmente quando se dirigia para casa ao colo do seu pai ou mãe, e que outro alguém pendurou na grade do cemitério, apenas porque era o sítio mais prático onde o poderia fazer. Mas para o fotógrafo, nada disso importa. Simplesmente não é assim que ele vê a realidade.
Para a mente imaginativa do fotógrafo, a chupeta não é a chupeta, é o início da vida... O cemitério não é o cemitério, é a morte... O nevoeiro não é o nevoeiro, é o mistério... Finalmente a passadeira que atravessa a estrada, não é uma passadeira, é a caminhada... Até o irmão que espera impacientemente (porque não é fotógrafo?) mais à frente à beira do passeio, não é apenas o irmão, é a representação do ser humano numa determinada fase da vida.
E de repente, o “pedaço de realidade” que o fotógrafo “encerrou” dentro da sua “gaiola pré-fabricada”, transforma-se numa outra realidade totalmente diferente da realidade tridimensional e fugaz, que é a que todos entendemos por verdadeira realidade. Neste caso, transforma-se numa representação da vida. Num só click.
O fotógrafo (ou pelo menos alguns deles) vive em permanente estado de graça, de encanto pelo mistério da vida. A mais insignificante folha seca que cai da árvore, a sombra desta projectada no chão, a nuvem que passa e que por segundos mostra uma forma que nunca mais se repetirá passem os séculos que passarem... Tudo é potencialmente fotografável. Desde o mais insignificante papel de rebuçado largado negligentemente por uma criança, até à bomba atómica e as suas nefastas consequências, tudo poderá ser motivo de uma fotografia.
O fotógrafo vive obcecado por registar, eternizar... Por desconstruir e reconstituir... Por descontextualizar e recontextualizar... Encerrando num pequeno rectângulo, todas as suas sensações. Sim, o fotógrafo fotografa sensações. Não a realidade.
Mas afinal o que é a realidade? Serão os fotógrafos seres dementes? Ou será antes, a realidade composta por camadas?
Por outras palavras: será que a única realidade é a realidade factual, palpável, enumerável e comum? Ou em vez disso, poderão haver inúmeras formas de interpretar e até ver uma mesma realidade? Todas elas tão válidas como a forma dita comum?
Posto isto, que sentido faz a ética da não intervenção? Da não manipulação de imagens?
Posto isto, e por outro lado, o que é afinal uma imagem fotográfica? Quando se fala de fotografia, fala-se de um determinado registo de uma determinada realidade, ou fala-se de um registo de uma determinada sensação, que o fotógrafo comunica aos demais, servindo-se para isso, de elementos existentes na realidade que observa?
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Texto: João Paulo Barrinha
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NOTA: este texto foi inspirado numa FOTOGRAFIA DE SÉRGIO MARQUES, assim como na história da sua realização tal como foi decrita no FÓRUM DE FOTOGRAFIA.NET